02/05/2020

ELOGIO SOLENE (PANEGÍRICO) À ACADÊMICA FLORENTINA ESTEVES, CADEIRA nº 04, que tem por patrono Alexandre de Gusmão

                                                                                                                            Por
Luísa Galvão Lessa Karlberg
 1 – Saudação
Saúdo as autoridades nominadas e o distinto público presente a esta sessão póstuma.  A Academia Acreana de Letras – AAL, que nasceu em 17 de novembro de 1937, com o formato original de 40 cadeiras, segundo a Academia Francesa, tem, por imperativo estatutário, declarar vaga uma de suas cadeiras, aquela de nº 04, e homenagear, no prazo de 30 dias, o seu titular falecido. Eu, no afã de cumprir fielmente com o desiderato de fazer uma retrospectiva da obra e da vida da autora, me desvelei em buscar pessoas que privaram da amizade da confreira, mas, infelizmente, não encontrei familiares que pudessem me guiar nessa tão árdua tarefa. Então, abro esta homenagem de louvor dizendo: a acadêmica ora homenageada, Florentina Esteves, foi uma grande educadora e escritora. Ela iluminou, com sua presença e personalidade, o sodalício da Academia Acreana de Letras. Nas poucas vezes em que conosco conviveu, sempre se mostrou uma fidalga, em gestos de refinada educação e, também, erudição. Uma mulher culta, simpática, afetuosa, serena, íntegra.

2 - Notícia do nascimento e morte de Florentina Esteves
A ACADEMIA ACREANA DE LETRAS - AAL, com profundo pesar, realiza o Panegírico da estimada Professora FLORENTINA ESTEVES, imortal que deixa vacante a Cadeira nº 4, que tem por patrono Alexandre de Gusmão. Filha do espanhol José Esteves e Ida Esteves (paulista de Santos), mais tarde Ida Rodrigues (por ter casado com outro espanhol de nome José Rodrigues). É neta de Maria e José Ferrante. Colhi do romancista Telmo Camilo Vieira (personalidade do segundo distrito, exatamente da “rua da frente”, igualmente Florentina) a seguinte história: José Rodrigues imigrou para os Estados Unidos e lá encontrou o amigo José Esteves. José Rodrigues que havia ganhado alguns dólares convidou o amigo a vir para o Acre e aqui montarem um hotel todo em madeira, estilo clássico. Assim fizeram, e aqui construíram o Hotel Madrid (espaço que hoje pertence à Fundação Cultural Elias Mansur), ponto de encontro da elite da época. José Esteves aqui casou com Ida Ferrante, que tinha um irmão Ministro do Superior Tribunal de Justiça (Miguel Ferrante) e outro irmão Domingos Jordão (que foi provedor da Santa Casa por mais de 40 anos). O avô de Florentina foi Vicente Jordan, um italiano. Florentina Esteves tinha dois irmãos, Maximiniano (Max) e Manoelito. Os avós de Florentina viajavam bastante pela Europa, Oriente, Estados Unidos. O avô foi executado, em plena rua, em Nova York, pela máfia italiana que buscava uma pessoa igualzinha a ele, roupa, altura, cabelos etc. Depois disso a avó veio para São Paulo, mais tarde ao Acre, para nunca ser alcançada pela máfia. Florentina nasceu em Rio Branco, em 30 de junho de 1931, no Segundo Distrito, na chamada “Rua da Frente”, hoje Eduardo Assmar, que foi o bairro fundador da cidade de Rio Branco. Passou toda a sua vida na zona urbana, sem estabelecer contato direto com o cotidiano da seringa, a não ser por meio das conversas e de ouvir as pessoas que desembarcavam, diariamente, vindas dos seringais, em frente ao Hotel Madrid, sua residência e ponto de encontro da “intelectualidade” local. Seu contato com a vida da selva se fez, sobretudo, por meio da prosa com Jovita, empregada do hotel, vinda do seringal.  Ou seja, Florentina, tal como muitos outros contistas e romancistas acreanos, dependeu de uma memória oral. Nessa época, a Amazônia vivia um período intermediário entre os dois ciclos econômicos da produção gomífera. Então, a nossa confreira, ainda muito jovem, com apenas 20 anos, deixou a terra natal e foi para o Rio de Janeiro, onde se dedicou aos estudos. Na Faculdade de Filosofia da UFRJ, no ano de 1953, formou-se em Letras Neolatinas. Anos depois, regressou ao Acre e, aqui, deu grandiosa contribuição como educadora e amante da Cultura regional. Foi a primeira professora graduada que teve o Acre. Foi Secretária de Educação entre 1967-1969. Faleceu no Rio de Janeiro, em 25 de março de 2018, com 87 anos. Na ausência de contato com familiares não sabemos a causa da morte.

3 – Gratidão acreana à Professora Florentina Esteves
No Acre, a Professora Florentina Esteves foi testemunha da efervescência da época, início do século XX, ao ver o entrar e o sair dos hóspedes no empreendimento de seus pais, o Hotel Madrid, situado no segundo distrito, a parte da cidade mais viva, porquanto ali residiam as famílias mais tradicionais e abastadas da cidade, incluindo a família de Florentina Esteves. “Ela viu de perto uma parte da formação do Estado do Acre e conviveu com os migrantes sírios e libaneses que ali se instalaram, com suas casas comerciais, na altura onde hoje é a denominada ‘Gameleira” (COSTA, 2013, p.62).
O Acre muito deve a Professora Florentina Esteves, que foi Secretária de Educação e excelente professora de francês no Colégio Acreano. Uma mulher de vasta cultura e muita humanidade. Tinha profundo amor pelas Letras, amante da literatura, observadora atenta dos costumes da época. Mesmo não tendo participado da vida nos antigos seringais acreanos, ela sabia, por meio de interação com as pessoas do meio, a ambiência e a vida do lugar, com todas as lutas e conquistas. Era uma mulher bem formada e bem informada.
O maior tributo que o Acre poderá oferecer à imortal Florentina Esteves será reeditar suas obras, distribuí-las nas escolas, pois são frutos do respeito e amor à região do Acre, espelhados numa literatura de alta qualidade, nada a desejar aos grandes nomes que correm pelo país e pelo mundo.
E, mais, gratidão à Professora de francês, recordando suas belas aulas, nas palavras do Dr. Edson Costa, publicadas no Facebook, em 05/04/2018, às 10h51min:
Bonjour Lundi,
Comment va Mardi?
Très bien Mercredi.
Je viens de la part de Jeudi
Dire à Vendredi
qu'il se prépare Samedi
Pour aller à l’église Dimanche!

4 – Legado literário
A literatura é uma forma de arte que tem como matéria-prima a palavra. A sua finalidade é recriar a realidade, a partir do ponto de vista do escritor. E, segundo dizem estudiosos da literatura de Florentina Esteves, afiançam que ela, de conspiração entre sua imaginação, a experiência de leituras herdada da avó e a memória nutrida pelo ouvir constante sobre fatos, pessoas e situações, escreveu os livros que compõem a sua valiosa e primorosa literatura. Nós a consideramos uma literata completa: cronista, contista e romancista da melhor qualidade. Escreveu várias obras, como “O empate” (1993, romance), “Enredos da Memória” (1990, crônicas), “O Acre de ontem e de hoje”, (2008, crônicas), “Direito e Avesso” (1998, contos), livro de 32 contos, narrativas que deveriam ser lidas e conhecidas pelos estudantes acreanos. Nesta obra (Direito e Avesso), a Professora Florentina conta diversas histórias do povo da mata, com destaque para as personagens femininas, tanto nas histórias da floresta como da cidade, quando registra costumes e crendices acreanas.
Florentina Esteves (1931) ambienta seus textos no convívio acreano, desde a segunda crise da economia da borracha até o finalzinho dela no século XX. Escrevia de modo peculiar, um manejo estrondoso com as palavras e uma forma bonita de retratar o Acre, seus costumes e cultura, como no Conto ”Mapinguari”, quando descreve, de modo fantástico, a figura lendária dessa  entidade, no seu caráter simbólico e imagético, assim como tudo que ele representa na população da floresta. Assim, deixa como legado, uma rica literatura e a mais significativa prosa do Acre, que tem sido tema de estudo e pesquisa em Universidades Brasileiras, caso especial da Tese de Doutorado da Prof.ª Dr.ª Maria José da Silva Morais Costa, cujo título é bem significativo: “Trajetória de uma expressão amazônica, o encanto de desencanto em Florentina Esteves” (2013)
Diz Costa (2013, p.63) que “Enredos da memória” reúnem 32 contos divididos em seis capítulos: Um pouco de história, O cenário, Personagens, Infância, Capítulos que a história não contou e Anedotário. É um livro onde Florentina Esteves reconstrói os momentos iniciais da cidade de Rio Branco, “do ponto de vista da classe dominante local, quando ela mal e mal se vestia de cidade” (COSTA, 2003. P.52). Na tessitura textual dessa obra, ela conta fatos da história acreana (Empresa e Revolução acreana), bem como fala sobre figuras conhecidas da sociedade local, como o poeta Juvenal Antunes, a Professora Mozinho e Garibaldi Brasil. Fala dos estabelecimentos que abrigaram os acontecimentos sociais, as festas e a vida cultural da cidade, tais como o  Hotel Madrid, o Beco-do-mijo e a Tentamen. E nessas narrativas também estão presentes a infância da nossa confreira. Esse livro, segundo Costa (2013), “é a soma de confissão pessoal, depoimentos de vivência e imaginação num discurso que pretende reconstruir o passado por meio da recordação”.
O romance O empate traz uma proposta um pouco diferente da anterior, aqui, Florentina se propõe, por meio de uma narrativa mais longa, desinteriorizar vivências onde os enredos da terra se haviam depositado. A trama se faz em torno da vida de Severino Sobral, seringueiro por 50 anos, que vivia numa colocação próxima à cidade de Xapuri.
Na primeira parte do livro, a exemplo de Potyguara, Ferrante, Mário Maia, Telmo Camilo Vieira, ela relembra a chegada de Severino ao seringal e a formação da família – mescla do nordestino com o indígena. Na segunda parte, ela refaz o contexto dos empates contra os “paulistas”, que aqui chegaram na época do Governo Wanderley Dantas (o Dantinha). Tece um enredo permeado com fortes pinceladas de lirismo, como quando narra o encontro de Severino com Mani, sua esposa, e o nascimento dos filhos do casal. Nesse romance, em relação a Enredos da memória, há um aperfeiçoamento na técnica narrativa, por meio de monólogos interiores que levam a uma caracterização mais verossímil das personagens e uma precisão maior na técnica narrativa.
Em Direito e avesso, a escritora retoma a narrativa curta, escreve 32 contos, numa fase mais madura de sua escrita. Os enredos são interessantes quando passa da prosa descritiva inicial de sua produção literária, agora para uma narração que denota maior riqueza de conteúdo e de forma.
Diz Costa (2013) que a proposta da contista, neste último livro, é imaginar, cada vez mais, a pluralidade das  existências acreanas. E, assim, os contos estão centrados na realidade vivida nos seringais, na vida da capital Rio Branco, na fala dos ribeirinhos, das pessoas que caminham nas ruas da cidade; da classe média do lugar, das crianças, homens e mulheres. Por aí vai construindo as histórias, tendo como figura recorrente o rio como representação do curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus desvios e obstáculos.  Também, é para notar que as paisagens geográficas e sociais, arquitetadas nos contos de Florentina, têm eco em toda a literatura de expressão amazônica, uma vez que são criadas sobre os mesmos pressupostos e olhares.
Interessante notar, nesse percurso literário, que Florentina Esteves, aos poucos, colhe material para projetar suas personagens. Com isso, mostra que o desencanto da maioria delas (como se verá no desfecho de grande parte dos contos) não se deve ao fato de serem ricos ou pobres, homens ou mulheres, novos ou velhos, mas, antes de tudo, deve-se a uma circunstância açambarcante da compreensão desses indivíduos. No nível formal, Florentina reinventa seu jeito de narrar, inaugurado com Enredos da memória, a influência de um Graciliano Ramos, com frases nominais e a forte presença de regionalismo. Igualmente ao escritor alagoano, ela também traduz vidas, não aquelas marcadas pelas secas, mas vidas cheias, encharcadas das águas da Amazônia. Todavia, no estilo da linguagem objetiva e precisa ela aponta para a igualdade de frustrações, ou seja, “assim como as vidas secas de Graciliano, as vidas úmidas de Florentina também se constroem sob o signo de uma negatividade evidenciada no ritmo discursivo de ambos” (COSTA, 2013, p. 64).

5 – Identificação com o lugar e contexto histórico
Interessante observar que toda produção de Florentina permite ao leitor identificar a si, o pai, o avô, o tio, a tia, o primo, amigos, particularmente na construção de imagens das gentes acreanas. O contexto histórico centra-se na Batalha da Borracha e a derrocada da economia após a Segunda Guerra. Talvez, por isso, a obra possui um ‘ar de denúncias’, pelo fato de as personagens serem limitadas, conformadas nos seus próprios imaginários, limitadas que são diante das expectativas de vida, impotentes, considerando não haver, para elas, saída que não seja a conformação ou a morte. Parece-nos com o Brasil de hoje, quando nós já não acreditamos nas instituições e num cenário de esperança para os nossos sucessores. Nós, do Brasil de hoje, igualmente os soldados da borracha, de Florentina Esteves, vivemos a ausência de confiança no futuro.
Diz Costa (2013, in Bachelard, em A poética do espaço,1986, p.42) “que os escritores nos dão seus cofres para ler. Ora, se os cofres funcionam, simbolicamente, como um dos órgãos da vida psicológica, a franquia deles para o deleite do leitor significaria a abertura de uma intimidade”.
Foi a busca da vida íntima da literatura de expressão acreana de Florentina Esteves que motivou a escrita desse Panegírico, tão bem auxiliado por Costa (2013), no fabuloso livro “Trajetória de uma expressão amazônica – o encanto do desencanto em Florentina Esteves”.
No livro Direito e avesso o leitor encontra a “natureza refúgio” e a natureza que empareda o ser humano, tirando todas as perspectivas de novidade de vida. Há, aqui, o rio como signo de esperança, de canal para as novidades que chegam ao seringal e a morte nas águas turbulentas. Ao tempo que os rios dão vida, também confinam os seres humanos que habitam na floresta amazônica.
Então, todas as imagens, personagens, plenos de sonhos e ideais,  transcendem à localização espacial, isso porque nessa selva (espécie de cela) o ser humano é impedido de desejar,  levado a se conformar, como muitos de nós, com essa realidade do tempo, como nós estamos neste século XXI, quando o panorama sociocultural nos remete, sempre, de volta a um passado que não se compreende por inteiro, pois ele ainda está se fazendo.
Para a nossa despedida, valemo-nos das palavras de Costa (2013, p.54):

Flora, flora, Florentina. Face menina. Face professora. Face intelectual. Faces/afluentes de um rio sempre fluido, aguando e sendo aguado em uma terra que conhece como a palma da mão. Afluentes que se encontram nesse corpo ruivo cujo modo de expressão se dá pelas dobras de uma linguagem artesanal.

A Academia Acreana de Letras se despede de Florestina Esteves, mas a eterniza no coração, na forma de um farol de luz. O destino une e separa. Mas nenhuma força é grande o suficiente para fazer esquecer a nossa estimada confreira. A morte não poupa ninguém. — Mors omni aetate communis est. Adeus, ilustre imortal  Professora, escritora, contista, romancista Florestina Esteves.
Saudade Eterna.
Sodalício da AAL

REFERÊNCIAS
ESTEVES, F. Direito e avesso. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1998. 93 p.
___. O empate. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1993.84 p.
___. Enredos da memória. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2002. 158 p.
___. O Acre de ontem e hoje. Editora: MM Pain, 2008.
COSTA, Maria José da Silva Morais Costa. Trajetória de uma expressão amazônica – o encanto do desencanto em Florentina Esteves. Patrocínio da Fundação de Cultura Elias Mansur. All Print Editora, 143 p.

FONTES SECUNDÁRIAS
CARVALHO, D. M. S. Entre o oral e o escrito: o conto numa comunidade amazônica. Araraquara, 2001. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Curso de Pós-graduação em Letras. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista. 154 p.
 ___. A presença da literatura oral no Vale do Juruá: manifestações folclóricas e identidade. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2005. 124 p. CARVALHO, J. C. Amazônia revisitada: de Carvajal a Márcio Souza. Rio Branco: EDUFAC, 2005. 357 p.

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