Luísa Galvão Lessa Karlberg
1 – Saudação
Saúdo as autoridades nominadas e o distinto público presente
a esta sessão póstuma. A Academia Acreana de Letras – AAL, que nasceu em
17 de novembro de 1937, com o formato original de 40 cadeiras, segundo a
Academia Francesa, tem, por imperativo estatutário, declarar vaga uma de suas
cadeiras, aquela de nº 04, e homenagear, no prazo de 30 dias, o seu titular falecido.
Eu, no afã de cumprir fielmente com o desiderato de fazer uma retrospectiva da
obra e da vida da autora, me desvelei em buscar pessoas que privaram da amizade
da confreira, mas, infelizmente, não encontrei familiares que pudessem me guiar
nessa tão árdua tarefa. Então, abro esta homenagem de louvor
dizendo: a acadêmica ora homenageada, Florentina Esteves, foi uma grande educadora
e escritora. Ela iluminou, com sua presença e personalidade, o sodalício da
Academia Acreana de Letras. Nas poucas vezes em que conosco conviveu, sempre se
mostrou uma fidalga, em gestos de refinada educação e, também, erudição. Uma
mulher culta, simpática, afetuosa, serena, íntegra.
2 - Notícia do nascimento e morte de Florentina Esteves
A ACADEMIA
ACREANA DE LETRAS - AAL, com profundo pesar, realiza o Panegírico da estimada Professora
FLORENTINA ESTEVES, imortal que deixa vacante a Cadeira nº 4, que tem
por patrono Alexandre de Gusmão.
Filha do espanhol José Esteves e Ida Esteves (paulista de Santos), mais tarde
Ida Rodrigues (por ter casado com outro espanhol de nome José Rodrigues). É
neta de Maria e José Ferrante. Colhi do romancista Telmo Camilo Vieira
(personalidade do segundo distrito, exatamente da “rua da frente”, igualmente
Florentina) a seguinte história: José Rodrigues imigrou para os Estados Unidos
e lá encontrou o amigo José Esteves. José Rodrigues que havia ganhado alguns
dólares convidou o amigo a vir para o Acre e aqui montarem um hotel todo em
madeira, estilo clássico. Assim fizeram, e aqui construíram o Hotel Madrid
(espaço que hoje pertence à Fundação Cultural Elias Mansur), ponto de encontro
da elite da época. José Esteves aqui casou com Ida Ferrante, que tinha um irmão
Ministro do Superior Tribunal de Justiça (Miguel Ferrante) e outro irmão
Domingos Jordão (que foi provedor da Santa Casa por mais de 40 anos). O avô de
Florentina foi Vicente Jordan, um italiano. Florentina Esteves tinha dois
irmãos, Maximiniano (Max) e Manoelito. Os avós de Florentina viajavam bastante
pela Europa, Oriente, Estados Unidos. O avô foi executado, em plena rua, em
Nova York, pela máfia italiana que buscava uma pessoa igualzinha a ele, roupa,
altura, cabelos etc. Depois disso a avó veio para São Paulo, mais tarde ao Acre,
para nunca ser alcançada pela máfia. Florentina nasceu em Rio Branco, em 30 de
junho de 1931, no Segundo Distrito, na chamada “Rua
da Frente”, hoje Eduardo Assmar, que foi o bairro fundador da cidade de Rio
Branco. Passou toda a sua vida na zona urbana, sem estabelecer contato direto
com o cotidiano da seringa, a não ser por meio das conversas e de ouvir as
pessoas que desembarcavam, diariamente, vindas dos seringais, em frente ao
Hotel Madrid, sua residência e ponto de encontro da “intelectualidade” local.
Seu contato com a vida da selva se fez, sobretudo, por meio da prosa com
Jovita, empregada do hotel, vinda do seringal. Ou seja, Florentina, tal como muitos outros
contistas e romancistas acreanos, dependeu de uma memória oral. Nessa época, a
Amazônia vivia um período intermediário entre os dois ciclos econômicos da
produção gomífera. Então, a nossa confreira, ainda muito jovem, com apenas 20
anos, deixou a terra natal e foi para o Rio de Janeiro, onde se dedicou
aos estudos. Na Faculdade de Filosofia da UFRJ, no
ano de 1953, formou-se em Letras Neolatinas. Anos depois, regressou ao
Acre e, aqui, deu grandiosa contribuição como educadora e amante da Cultura
regional. Foi a primeira professora graduada que teve o Acre. Foi Secretária de
Educação entre 1967-1969. Faleceu no Rio de Janeiro, em 25 de março
de 2018, com 87 anos. Na ausência de contato com familiares
não sabemos a causa da morte.
3 – Gratidão acreana à Professora Florentina Esteves
No Acre, a Professora Florentina Esteves foi testemunha da
efervescência da época, início do século XX, ao ver o entrar e o sair dos
hóspedes no empreendimento de seus pais, o Hotel Madrid, situado no segundo
distrito, a parte da cidade mais viva, porquanto ali residiam as famílias mais
tradicionais e abastadas da cidade, incluindo a família de Florentina Esteves. “Ela
viu de perto uma parte da formação do Estado do Acre e conviveu com os
migrantes sírios e libaneses que ali se instalaram, com suas casas comerciais,
na altura onde hoje é a denominada ‘Gameleira” (COSTA, 2013, p.62).
O Acre muito deve a Professora Florentina Esteves, que foi Secretária
de Educação e excelente professora de francês no Colégio Acreano. Uma mulher de
vasta cultura e muita humanidade. Tinha profundo amor pelas Letras, amante da
literatura, observadora atenta dos costumes da época. Mesmo não tendo
participado da vida nos antigos seringais acreanos, ela sabia, por meio de
interação com as pessoas do meio, a ambiência e a vida do lugar, com todas as
lutas e conquistas. Era uma mulher bem formada e bem informada.
O maior tributo que o Acre
poderá oferecer à imortal Florentina Esteves será reeditar suas obras,
distribuí-las nas escolas, pois são frutos do respeito e amor à região do Acre,
espelhados numa literatura de alta qualidade, nada a desejar aos grandes nomes
que correm pelo país e pelo mundo.
E, mais, gratidão à
Professora de francês, recordando suas belas aulas, nas palavras do Dr. Edson
Costa, publicadas no Facebook, em 05/04/2018, às 10h51min:
Bonjour Lundi,
Comment va Mardi?
Très bien Mercredi.
Je viens de la part de Jeudi
Dire à Vendredi
qu'il se prépare Samedi
Pour aller à l’église Dimanche!
Comment va Mardi?
Très bien Mercredi.
Je viens de la part de Jeudi
Dire à Vendredi
qu'il se prépare Samedi
Pour aller à l’église Dimanche!
4 – Legado literário
A literatura é uma forma de arte
que tem como matéria-prima a palavra. A sua finalidade é recriar a realidade, a
partir do ponto de vista do escritor. E, segundo dizem estudiosos da literatura de Florentina Esteves, afiançam que
ela, de conspiração entre sua imaginação, a
experiência de leituras herdada da avó e a memória nutrida pelo ouvir constante
sobre fatos, pessoas e situações, escreveu os livros que compõem a sua valiosa
e primorosa literatura. Nós a consideramos uma literata completa:
cronista, contista e romancista da melhor qualidade. Escreveu várias
obras, como “O empate” (1993, romance), “Enredos da Memória” (1990, crônicas), “O Acre de ontem e de hoje”, (2008,
crônicas), “Direito
e Avesso” (1998, contos), livro de 32 contos,
narrativas que deveriam ser lidas e conhecidas pelos estudantes acreanos. Nesta
obra (Direito e Avesso), a Professora Florentina conta diversas histórias do
povo da mata, com destaque para as personagens femininas, tanto nas histórias da
floresta como da cidade, quando registra costumes e crendices acreanas.
Florentina
Esteves (1931) ambienta seus textos no convívio acreano, desde a segunda crise
da economia da borracha até o finalzinho dela no século XX. Escrevia de modo peculiar, um manejo estrondoso com as palavras e uma forma bonita
de retratar o Acre, seus costumes e cultura, como no Conto ”Mapinguari”, quando
descreve, de modo fantástico, a figura lendária dessa entidade, no seu caráter simbólico e
imagético, assim como tudo que ele representa na população da floresta. Assim,
deixa como legado, uma rica literatura e a mais significativa prosa do Acre,
que tem sido tema de estudo e pesquisa em Universidades Brasileiras, caso
especial da Tese de Doutorado da Prof.ª Dr.ª Maria José da Silva Morais Costa,
cujo título é bem significativo: “Trajetória de uma expressão amazônica, o
encanto de desencanto em Florentina Esteves” (2013)
Diz Costa
(2013, p.63) que “Enredos da memória” reúnem 32 contos divididos em seis
capítulos: Um pouco de história, O cenário, Personagens, Infância,
Capítulos que a história não contou e Anedotário. É um livro onde
Florentina Esteves reconstrói os momentos iniciais da cidade de Rio Branco, “do
ponto de vista da classe dominante local, quando ela mal e mal se vestia de
cidade” (COSTA, 2003. P.52). Na tessitura textual dessa obra, ela conta
fatos da história acreana (Empresa e Revolução acreana), bem como
fala sobre figuras conhecidas da sociedade local, como o poeta Juvenal Antunes,
a Professora Mozinho e Garibaldi Brasil. Fala dos estabelecimentos que
abrigaram os acontecimentos sociais, as festas e a vida cultural da cidade,
tais como o Hotel Madrid, o Beco-do-mijo
e a Tentamen. E nessas narrativas também estão presentes a infância da nossa
confreira. Esse livro, segundo Costa (2013), “é a soma de confissão pessoal,
depoimentos de vivência e imaginação num discurso que pretende reconstruir o
passado por meio da recordação”.
O romance O
empate traz uma proposta um pouco diferente da anterior, aqui, Florentina
se propõe, por meio de uma narrativa mais longa, desinteriorizar vivências onde
os enredos da terra se haviam depositado. A trama se faz em torno da vida de
Severino Sobral, seringueiro por 50 anos, que vivia numa colocação próxima à
cidade de Xapuri.
Na primeira
parte do livro, a exemplo de Potyguara, Ferrante, Mário Maia, Telmo Camilo
Vieira, ela relembra a chegada de Severino ao seringal e a formação da família
– mescla do nordestino com o indígena. Na segunda parte, ela refaz o contexto
dos empates contra os “paulistas”, que aqui chegaram na época do Governo
Wanderley Dantas (o Dantinha). Tece um enredo permeado com fortes pinceladas de
lirismo, como quando narra o encontro de Severino com Mani, sua esposa, e o
nascimento dos filhos do casal. Nesse romance, em relação a Enredos da
memória, há um aperfeiçoamento na técnica narrativa, por meio de monólogos
interiores que levam a uma caracterização mais verossímil das personagens e uma
precisão maior na técnica narrativa.
Em Direito
e avesso, a escritora retoma a narrativa curta, escreve 32 contos, numa
fase mais madura de sua escrita. Os enredos são interessantes quando passa da
prosa descritiva inicial de sua produção literária, agora para uma narração que
denota maior riqueza de conteúdo e de forma.
Diz Costa
(2013) que a proposta da contista, neste último livro, é imaginar, cada vez
mais, a pluralidade das existências acreanas.
E, assim, os contos estão centrados na realidade vivida nos seringais, na vida
da capital Rio Branco, na fala dos ribeirinhos, das pessoas que caminham nas
ruas da cidade; da classe média do lugar, das crianças, homens e mulheres. Por
aí vai construindo as histórias, tendo como figura recorrente o rio como
representação do curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções,
e a variedade de seus desvios e obstáculos.
Também, é para notar que as paisagens geográficas e sociais,
arquitetadas nos contos de Florentina, têm eco em toda a literatura de
expressão amazônica, uma vez que são criadas sobre os mesmos pressupostos e
olhares.
Interessante
notar, nesse percurso literário, que Florentina Esteves, aos poucos, colhe
material para projetar suas personagens. Com isso, mostra que o desencanto da
maioria delas (como se verá no desfecho de grande parte dos contos) não se deve
ao fato de serem ricos ou pobres, homens ou mulheres, novos ou velhos, mas,
antes de tudo, deve-se a uma circunstância açambarcante da compreensão desses
indivíduos. No nível formal, Florentina reinventa seu jeito de narrar,
inaugurado com Enredos da memória, a influência de um Graciliano Ramos,
com frases nominais e a forte presença de regionalismo. Igualmente ao escritor
alagoano, ela também traduz vidas, não aquelas marcadas pelas secas, mas vidas
cheias, encharcadas das águas da Amazônia. Todavia, no estilo da linguagem objetiva
e precisa ela aponta para a igualdade de frustrações, ou seja, “assim como as
vidas secas de Graciliano, as vidas úmidas de Florentina também se constroem
sob o signo de uma negatividade evidenciada no ritmo discursivo de ambos”
(COSTA, 2013, p. 64).
5 – Identificação com o lugar e contexto histórico
Interessante
observar que toda produção de Florentina permite ao leitor identificar a si, o
pai, o avô, o tio, a tia, o primo, amigos, particularmente na construção de
imagens das gentes acreanas. O contexto histórico centra-se na Batalha da
Borracha e a derrocada da economia após a Segunda Guerra. Talvez, por isso, a
obra possui um ‘ar de denúncias’, pelo fato de as personagens serem limitadas,
conformadas nos seus próprios imaginários, limitadas que são diante das expectativas
de vida, impotentes, considerando não haver, para elas, saída que não seja a
conformação ou a morte. Parece-nos com o Brasil de hoje, quando nós já não
acreditamos nas instituições e num cenário de esperança para os nossos
sucessores. Nós, do Brasil de hoje, igualmente os soldados da borracha, de
Florentina Esteves, vivemos a ausência de confiança no futuro.
Diz Costa
(2013, in Bachelard, em A poética do espaço,1986, p.42) “que os
escritores nos dão seus cofres para ler. Ora, se os cofres funcionam,
simbolicamente, como um dos órgãos da vida psicológica, a franquia deles para o
deleite do leitor significaria a abertura de uma intimidade”.
Foi a busca
da vida íntima da literatura de expressão acreana de Florentina Esteves que
motivou a escrita desse Panegírico, tão bem auxiliado por Costa (2013), no
fabuloso livro “Trajetória de uma
expressão amazônica – o encanto do desencanto em Florentina Esteves”.
No livro Direito
e avesso o leitor encontra a “natureza refúgio” e a natureza que empareda o
ser humano, tirando todas as perspectivas de novidade de vida. Há, aqui, o rio
como signo de esperança, de canal para as novidades que chegam ao seringal e a
morte nas águas turbulentas. Ao tempo que os rios dão vida, também confinam os
seres humanos que habitam na floresta amazônica.
Então,
todas as imagens, personagens, plenos de sonhos e ideais, transcendem à localização espacial, isso
porque nessa selva (espécie de cela) o ser humano é impedido de desejar, levado a se conformar, como muitos de nós,
com essa realidade do tempo, como nós estamos neste século XXI, quando o
panorama sociocultural nos remete, sempre, de volta a um passado que não se
compreende por inteiro, pois ele ainda está se fazendo.
Para a nossa despedida, valemo-nos das
palavras de Costa (2013, p.54):
Flora, flora, Florentina. Face menina. Face professora. Face intelectual. Faces/afluentes
de um rio sempre fluido, aguando e sendo aguado em uma terra que conhece como a
palma da mão. Afluentes que se encontram nesse corpo ruivo cujo modo de
expressão se dá pelas dobras de uma linguagem artesanal.
A
Academia Acreana de Letras se despede de Florestina Esteves, mas a eterniza no
coração, na forma de um farol de luz. O destino une e separa.
Mas nenhuma força é grande o suficiente para fazer esquecer a nossa estimada
confreira. A morte não poupa ninguém. — Mors omni aetate communis est. Adeus,
ilustre imortal Professora, escritora,
contista, romancista Florestina Esteves.
Saudade
Eterna.
Sodalício da AAL
REFERÊNCIAS
ESTEVES, F. Direito e avesso. Rio
de Janeiro: Oficina do Livro, 1998. 93 p.
___. O empate. Rio de Janeiro:
Oficina do Livro, 1993.84 p.
___. Enredos da memória. Rio
Branco: Fundação Elias Mansour, 2002. 158 p.
___. O Acre de ontem e hoje. Editora: MM
Pain, 2008.
COSTA, Maria José da Silva Morais Costa.
Trajetória de uma expressão amazônica – o
encanto do desencanto em Florentina Esteves. Patrocínio da Fundação de
Cultura Elias Mansur. All Print Editora, 143 p.
FONTES SECUNDÁRIAS
CARVALHO, D. M. S. Entre
o oral e o escrito: o conto numa comunidade amazônica. Araraquara, 2001.
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Curso de Pós-graduação em
Letras. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista. 154 p.
___. A presença da literatura oral no Vale
do Juruá: manifestações folclóricas e identidade. Rio de Janeiro: Papel
Virtual, 2005. 124 p. CARVALHO, J. C. Amazônia revisitada: de Carvajal a
Márcio Souza. Rio Branco: EDUFAC, 2005. 357 p.
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