Por: Luísa Karlberg
lessaluisa@yahoo.com.br
E a cidade amanheceu brilhante, o sol a cintilar
no horizonte azul. Era pleno verão, os dias lindos, noites enluaradas, pessoas na frente das
casas a contar histórias, trocar receitas, falar da família, enfim, hábitos
típicos do interior brasileiro.
Amália, uma moça de família tradicional,
amanheceu diferente dos outros dias habituais. Naquela noite de lua-cheia,
havia se tornado mulher. Foi um encontro apaixonado, num barco, com o namorado.
Ele, Maurício, um rapaz bem apessoado, fazia-lhe a corte há quatro anos. Mas
Amália temia um envolvimento maior, considerando que a cidadela era pequena,
ela não devia atender ao fogo da paixão que ardia, sempre, em todos os
encontros com Maurício. Mas na noite anterior, ela foi apanhada de surpresa.
Uma armadilha ao luar!
Amália residia perto do rio, e ali no
porto havia muitos barcos. Um deles era do pai, Sr. Antenor. Era de pequeno
porte, ela estava habituada a conduzi-lo. Saiu de casa e rumou direto ao rio,
nas proximidades da casa. Olhou a lua convidativa a um passeio noturno, mesmo
que breve. Vestia uma saia leve de seda e um casaco de cor vermelha que fazia
contraste com sua pele muito alva. Nos cabelos uma tiara de pérolas. Parecia
uma princesa de contos de fadas, corpo esguio, lábios carnudos, cabelos negros
e um olhar penetrante, como a inquerir o interior das almas. Esse olhar
incendiava a paixão dos rapazes. E a voz, então, isso nem se fala, muito mansa
e melodiosa. Colocava-se bem diante das situações e tinha uma expressão de
serenidade. Amália era uma jovem encantadora, naturalmente, de uma beleza pura
e apaixonante.
Ela adentra ao barco e pensa: - Vou até
ali em cima, olho mais de perto a lua que me segue, dentro de minutos eu volto.
Dito e feito. Pegou um remo pequeno e começou a movimentar o pequeno barco, que
logo atendeu ao impulso das águas agitadas pelo remo. A canoa deslizou como um canto de cotovia, naquela belíssima
noite, o ruído das águas mais pareciam notas musicais. Assim, Amália começou a
cantar:
[...] o meu amor chorou, não sei por qual razão...
O meu amor chorou, não sei por que razão... (...)
Mas te prometo um dia, meu amor
Mudar de vida pra te consolar
E pra fazer seu gosto
Embora morra de desgosto
Trocarei tudo o que tenho
Procê não chorar.
Parou de remar e afinou os ouvidos.
Continuou a ouvir o barulho do remo. Mas ela estava parada, como podia? Será
que a lua desceu para conversar com ela sobre o seu amor por Maurício? Ah!
Maurício, como era bonito o seu jeito de andar e cantar nas serenatas. Só em
pensar nele Amália sentiu o corpo estremecer.
Mas e aquele barulho de remo nas águas,
seria algum viajante noturno? E ao olhar, atentamente, para o porto de onde saíra
de barco, avistou, sob a luz do luar, outro barco, que vinha na sua direção.
Não dava para notar quem viajava tão sorrateiramente para saborear o luar. O
ruído das águas foram se tornando mais próximos a ela. Para espantar o
visitante, ela voltou a cantar: O meu amor chorou, não sei por qual razão... o
meu amor chorou... pronto, parou de sussurrar ao ouvir outra parte da canção:
[...] Mas te prometo um dia, meu amor
Mudar de vida pra te consolar
E pra fazer seu gosto
Embora morra de desgosto
Trocarei tudo o que tenho
Procê não chorar.
- Meu Deus, é o Maurício, essa voz
inesquecível de querubim. É ele sim, e se aproxima de mim. Será que me seguiu
ou veio apreciar os encantos dessa noite de luar?
Logo obteve uma resposta:
- Amália, querida, não tenha receio, sou
eu, teu Maurício. Eu vim te fazer companhia, cuidar de ti, meu anjo lindo. Não
saia sozinha à noite, cuidado com os botos que violam as donzelas!
Nisso o barco de Maurício encosta
naquele de Amália. Ele estava com um semblante lindo, o rosto mais parecia um
diamante, tanto brilho sob a luz do luar. Ele apanha uma corda, une os dois
barcos num laço, como a abraçar a moça. Ela não sabia o que falar, a voz estava
presa na garganta. O coração parecia querer sair pela boca.
Nesse instante, Amália beija o crucifixo
de pedras vermelhas que trazia na corrente dourada ao pescoço, e pede: - Deus
meu, dai-me tranquilidade, calma e a santa bênção... foi interrompida, nessa
breve reza, por uma canção linda:
Eu sonhei com eu e você no mesmo caminho,
Ele não tinha pedras nem mesmo espinhos,
Fiz no alto da montanha, um ninho pra nós dois,
Mas quando acordei, tudo se foi.
Vem, faz meu sonho ser real,
Apareça ou dê um sinal,
Diz que quer ser meu amor.
Vem, por favor me faz feliz,
É o meu coração quem diz,
Você é a musa dos sonhos meus.
Amália foi mudando de cor, ficou
igualmente a lua, brilhante, linda, apaixonada. Aquele era um encontro divino.
Ela nada havia planejado, menos ainda imaginado, foi a lua que promoveu o
encontro.
Maurício passa para dentro do barco de Amália,
lhe segura às mãos, beija-as delicadamente. Ele sente o perfume dele
misturar-se ao aroma da noite, das águas. Parece que entra num mundo encantado.
Tudo começou com um beijo apaixonado e ficou, de fato, encantada com todo o
cenário, a beleza e delicadeza do rapaz, a atração por ele, tudo contribuiu
para o que viria depois.
Após juras, carícias e murmúrios, ele convida-lhe:
seja minha, Amália, nunca irei decepcioná-la, te amarei eternamente, juro
diante da lua e das estrelas.Tu és para mim a mais bela de todas as mulheres!
O banco do barco foi o leito macio do
enlace amoroso, que teve algumas testemunhas: a noite, o luar, o barco, as
águas do rio.
Neste instante ela ouvia vozes e
clarins:
Sou cada vez mais sua,
Sua boca invadiu minha solidão,
O mais doce mel,
Provém dos beijos teus,
Refúgio onde encontro a paz
Moradia dos sonhos meus!
Assim, Amália e Maurício se amaram pela primeira
vez. Se eles se casaram? Ninguém sabe, mas com certeza se
amaram muitas e muitas vezes e nessa noite foi gerada uma linda criança, era o
fruto do Luar Amante! Mas o que se sabe é que Maurício e Amália repetiram,
muitas vezes, aqueles encontros. Decorridos três anos Amália assumiu, sozinha,
a criação de seu filho Luan. O Maurício, seu grande amor, foi iluminar o céu,
junto com as estrelas, mas ali deixou uma herança eterna do amor do casal.
AS OBSOLETAS CARTAS DE ANTIGAMENTE
(Quarto lugar no
VIII Concurso Literário Oliveira Caruso)
Por: Edir
Marques
Estive
pensando que a literatura e a memória de histórias familiares, das relações
entre amigos e até o registro de negócios comerciais estão em decadência, com a
ausência de relatos escritos, na medida em que a tecnologia se desenvolve e as
informações são trocadas por telefonia ou pelas redes sociais.
Tenho a mania de
guardar lembranças e lembrancinhas, desde simples cartões de natal e de
felicitações de aniversário, até longas cartas trocadas, em especial, com meus
pais, no tempo em que não dispúnhamos sequer de telefone para mandar notícias e
matar as saudades, neste longínquo recanto de nosso país.
Relendo-as, recordo-me
de fatos, transporto-me no tempo e retrocedo mais de cinquenta anos, quando vim
morar em Rio Branco, separando-me da família de origem, ainda muito nova e com
a responsabilidade de mãe de primeira viagem, em terra desconhecida e sem os
recursos a que fui acostumada.
A comunicação telefônica,
trazida pela Embratel, com a magia do DDD, que instantaneamente nos aproxima
pelo som e a emoção da voz, só surgiu no início da década de 70. Por isso, era
tão importante escrever cartas, enviadas pelo correio, que, por sua vez,
demandavam longo tempo até chegar a seu destino.
O cuidado secular com a
escrita das cartas não é observado no afã de noticiar ou comentar, de forma
rápida e superficial, os posts nas
redes sociais. Daí o declínio da literatura epistolar.
Se, por um lado, o
telefone, e agora o celular, com o face time,
nos facultam ouvir e ver a imagem das pessoas queridas, se o facebook e o instagram viabilizam expor fotos, publicar textos, fazer
comentários em tempo real, tudo é volátil. Nada fica registrado. Quando muito,
o próprio facebook se encarrega de
exibir posts antigos, de dois, três
anos atrás, a seu bel prazer, para rememorarmos.
Hoje, me deparei com
algumas cartas amareladas pelo tempo e pude deleitar-me com certos fatos que
estavam perdidos (ou guardados) no recôndito da memória. Cartas de amor, quando,
namorados, nos separávamos por longas viagens; cartas de família, de irmã e de
filha saudosa; cartas dos filhos estudantes, dando notícias e pedindo para
aumentar a mesada; cartas maternas de conselhos para o filho distante!
Não há como negar o
prazer imenso, a saudade e a melancolia que estas leituras proporcionam. A vida
transcorria mais lenta, dependurada no tempo de espera, de olho na caixa do
correio.
E fico conjeturando: os jovens enamorados de
hoje estão privados da emoção de receber um envelope, com o conteúdo de textos
românticos, que faziam arfar o coração, com a chegada do correio. Correspondências
muitas vezes escondidas no bolso do avental ou no regaço, junto ao peito, para
serem lidas e relidas, no silêncio do quarto; sorvidas, palavra por palavra,
buscando nas entrelinhas o não dito, o sonhado, o adivinhado! E depois rabiscar
respostas, rasgar, reescrever, tentar colocar no papel, com o único recurso das
palavras, o sentimento que palpita, a lágrima contida, o beijo e o abraço
imaginados de olhos fechados, sem a força da imagem ou o embargo da voz, que
hoje é possível, para intensificar a comunicação. Vez ou outra, o envio de
fotografias para reforçar a lembrança, para suprir o vazio de um corpo
desejado.
Hoje, não há que ter o
cuidado ao escrever para os pais, na tentativa de não deixar vazar uma queixa,
um reclamo, uma lamúria! Dar notícias boas, confortar a saudade, evitar passar
uma dor sentida! Afinal, o sofrimento ou a atribulação do momento já seriam um
passado, ao receber a missiva, passado que não valia a pena comunicar, pois o
tempo consertou ou fez esquecer ou curou o que estava machucando, na ocasião do
registro.
Os tempos são outros!
Perdemos ou ganhamos com as mudanças? Desconfio que perdemos...
Edir Marques (1941) é poetisa, declamadora,
pedagoga pela Universidade Federal do Acre e mestra pela Universidade Federal
Fluminense. Membro efetivo da Academia Acreana de Letras e membro honorário ou
correspondente de diversas Academias do Rio de Janeiro. É vice-presidente da
AJEB - Coordenadoria do Acre e da Federação das Academias de Letras e Artes do
Estado do Acre. Publicações: "EDUCAÇÃO BÁSICA NO ACRE: 1962-1983”;
"CONFIDÊNCIAS”; “GOTAS MADURAS”; “MEMÓRIAS ENGRAÇADAS – e nem tanto”, além
de poesias e contos publicados em Coletâneas e Antologias.
VIVENDO UM DIA DE CADA
VEZ
Por: Fátima Cordeiro
Ele costumava perder inúmeras
bicicletas e celulares, além, claro, o pagamento do mês. Trabalhava muito
naquela oficina longe de sua casa. Andava muitos quilômetros a pé todos os dias
de sol a sol. Sua mãe não dormia enquanto ele não voltasse para casa.
Nas noites de crise saia
cantarolando pelas ruas do bairro o nome da sua grande paixão: a Telma. Inventava
muitas canções de amor. “Telma, querida, não brigue comigo, te amo, te amo,
sem você não existo...’’ ou “Telminha, amada minha, sorria que a noite é só
minha’’. Claro, os vizinhos zombavam daquela criatura embriagada pelo
vício. Gostava de fumar cigarros que comprava na banquinha do seu Abreu, que infelizmente,
ouvia a famosa frase de vez em quando, quando ia cobrá-lo “põe na conta do
Abreu, se ele não pagar, nem eu’’ e caia na gargalhada. Certa vez foi apenas de
cueca, tentando encontrar o caminho da banquinha de cigarros. Seu Abreu exigiu
respeito no seu estabelecimento.
O nosso amigo do bar costumava
ficar muito brabo e convidava a todos para uma partida de braço. Mas, aos
poucos, caia em frente as calçadas dos vizinhos que chamavam a sua mãe, uma
velhinha simpática, muito devota das graças de Deus que sempre afirmava que o
seu filho iria deixar aquela vida de sofrimento. Aquilo não era vida.
Alguns amigos sempre traziam
notícias de seu filho quando este ficava dias sem aparecer. Um dia, comentaram
que o viram em meio a um grupo de mendigos, irreconhecível! D. Raimundinha, vizinha e amiga de sua mãe,
chegou para contar o que tinha
presenciado no mercadinho. Alguns mal intencionados fregueses para se
divertirem, passaram a perna na frente dele, e a queda foi desastrosa.
Mas, apesar de toda essa situação
vexatória, ele tinha dois amigos fieis: sua cachorrinha Princesa e o gatinho
Tutu. Ambos, não se importavam da forma que ele levava a vida. Gostavam dele
mesmo assim. Tutu, sempre dormia no peito dele quando chegava e ia para a rede
dormir. A Princesa sempre dormia à porta do quarto depois que ele entrava. Uma
espécie de protetora.
Um dia, passou muito mal, com
características de um AVC cerebral ou derrame como se fala na maioria das vezes.
O médico falou com muita seriedade que a sua vida estava dependendo do rumo que
ele daria dali para frente. Com álcool ou sem álcool. Sua mãe a essa altura
fazia promessas a Deus e esperava por uma cura de seu filho.
A
Princesa estava triste, não foi recepcioná-lo, apenas balançou o rabo. Não quis
comer. Ele deitou-se na rede. Sua
cachorrinha estava morrendo...
Ele chorou tal qual uma criança.
Era um choro diferente. Parece que não era somente pela perca do animal, mas,
também, pela situação que a sua vida estava. De tudo o que havia feito. Das
pessoas que havia prejudicado, de tudo o que havia perdido... Havia perdido a
sua dignidade, o seu respeito, a sua honra.
Olhou-se no espelho. Estava mais
velho do que a sua idade. Parecia não se reconhecer. Não havia o brilho de
outrora em seus olhos. Sentiu medo. Foi embora.
Houve a procura por ele por muitos
lugares da pacata cidade. Na delegacia, no hospital, no necrotério, nas ruas,
nos bares e, nada. Nenhum sinal de notícia. Nenhuma informação. Sua mãe aos
prantos, amigos e vizinhos já tentavam lhe acalmar e esperar o pior. Para
alguns, era um alivio não presenciar mais aqueles espetáculos do bêbado imundo
da rua. D. Celeste, no entanto, rezava
todas as noites e fazia promessas a Deus para o aparecimento de seu filho.
Chegou a pensar que ele havia viajado, quem sabe, para a terra do seu pai, lá
para as bandas do Rio Grande do Norte.
Depois de longos meses, a sua mãe
avista alguém muito conhecido chegando na calçada de casa. Quase não acreditava
no que os seus olhos estavam vendo! Estava tão bonito! Diferente. Falando com
mais calma, sorridente. Ambos se abraçam. Ele explica tudo o que havia
acontecido. Foi para um centro de Apoio e Recuperação. Depois de alguns minutos
de sorrisos, abraços, era bom está de volta.
A vizinhança olhava na janela como se tentasse ver uma fantasma. O
gatinho Tutu parecia ter crescido, seu pelo negro e brilhoso refletia a luz da
janela. Deixou o tapete quentinho para, também, recepcionar o seu dono, desta
vez, miava e tentava encarar o seu dono como se não acreditasse que era ele.
De volta ao seu quarto. Nunca havia
reparado na cor das paredes. Tinha um tom de verde muito interessante. Uma
fotografia com a sua mãe. Sorriu das vezes que ela acreditou em sua
recuperação. A rede grande e confortável do time do Corinthians que comprou no
seu primeiro pagamento na oficina de carros. Passou a mão na coleção de discos
de Fernando Mendes, Amado Batista e Roberto Carlos. Doaria. Aliás, iria doar
muitas outras coisas. Desejou roupas novas. Suas gavetas cheias de roupas que a
sua mãe lavava e engomava no ferro a carvão com todo o carinho. Retirou da
gaveta uma bermuda camuflada. Era a sua preferida. Sentiu um cheiro bom de
roupa limpa. A sua cama de madeira antiga coberta por um lençol bem velhinho de
algodão. Muito limpo e arrumado como se tivesse a sua espera.
Como era bom está de volta ao lar.
Muito simples, claro, mas, cheio de ternura e calor humano. Tomou um banho com
o sabonete de erva-doce. Deitou-se. Falou em voz alta para si mesmo: ‘’Concede-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não
posso modificar, coragem para modificar as que eu posso e sabedoria para
distinguir uma da outra...’’
Aos poucos, foi sendo dominado por um sono
restaurador. Um sonho trouxe a sua cachorrinha Collie de volta. Parecia feliz
por ter o seu dono de volta.
Maria de Fátima Mendes
Cordeiro é natural de Rio Branco Ac. Bacharel em Teologia, nível superior
incompleto em Artes Visuais. Licenciatura em Pedagogia. Possui três livros
publicados: Sementes de Mostarda, A Louca do Orfanato, A Menina Fez Carinho na
Lua. Pós graduada em Pedagogia Social e
Elaboração de Projetos. É membro da Sociedade Literária Acreana –SLA e Academia
Acreana de Letras-AAL.
A PASSAGEM
Por: Cecília Ugalde
cecilia.ugalde@hotmail.com
Era 1969. Entre os seringueiros e posseiros expulsos
de seus lugares estava João da Cruz. Em uma canoa coberta de palha, todos os seus
pertences: a mulher e os três filhos... rio abaixo, na esperança de que algum
dono de seringal lhe desse moradia, nem que para isso tivesse que trabalhar de
“meia”. O que não podia era viver eternamente dentro de uma canoa.
Seu pai era um excelente seringueiro, mas tinha desaparecido sem
deixar rastro logo no ano que havia tirado grande saldo. A mãe, também já
morta, contara-lhe que era neta do maior coronel daqueles tempos. Não tinha
nada porque seu pai era empregado da casa, que embuchou sinhá Lucinha, sua mãe e filha do dito coronel, que ao descobrir a safadeza, acorrentou o atrevido e
deixou morrer à míngua na beira de um lago.
João observava do lado de fora da tolda o cair da tarde. Olhava cada
estirão ou volta de rio. Precisava encontrar um lugar para atar sua rede e a de
sua família durante a noite que se aproximava. Três dias remando, estava
exausto, o rancho acabando...
Com grande alívio avistou... O campo era grande, o casarão também.
Encostou a canoa e avisou:
– Vô pedir dormida pro patrão. Tomara ser gente boa.
Subiu o porto e observou o cenário. Ao lado da casa grande havia o que
parecia ter sido um armazém. Estava sem cobertura, mas ainda de pé. Um casebre
no aceiro do campo e uma casa lá em cima da terra. No campo, algumas vacas
pastavam.
– Ôh de casa!
Na varanda, um senhor de meia idade lhe perguntou o que desejava.
João da Cruz, meio tímido, disse que procurava abrigo para passar a noite
e também lugar para morar, pois seu patrão havia vendido o seringal e o “paulista”
o tinha mandado embora.
Paulo Honório Junqueira era o dono daquele mundaréu de terras e disse a
João da Cruz que podia ficar uns três dias enquanto descansava, lá na casa de
Dona Dica, indicando o casebre ao aceiro do campo. Depois seguisse viagem, pois
ele também estava vendendo o seringal e por conta disso, não podia dar-lhe
moradia.
Tendo onde ficar, mesmo que fosse só por três dias, João preocupava-se
apenas em arranjar comida. Porém, Dona Dica o avisara:
– Caça num tem não, fio. O que tem muito é pexe no lago da passage, num
fosse malassombrado, ninguém tinha que passar fome não. A valença é que eu
tenho a sorte de ter sido ama de leite do sinhozinho Paulo, que num foi
malagradecido e até hoje me dá o de comer.
João quis saber que malassombro era esse que ninguém se atrevia a
mariscar no lago, pois ele precisava de comida e precisava muito.
– Pois sim – começou a contar Dona Dica – O avô do sinhozinho Paulo,
coroné Junqueira, descobriu que Zeca Manso, um cabra que carregava o comboio,
embuchô sinhá Lucinha, a única fia muié que ele tinha. Pegou Zeca Manso,
acorrentô os pé e as mão, atravessô ele pro otro lado do lago, onde só tinha mata
virge e onça, lá dexô o miseráve, e disse que se alguém tentasse fazer a
disfeita de ajudar o Zeca, ia ficá no lugar dele. O coitado ficou lá, amarrado.
E mermo que num tivesse, nem podia tentá nadá pro lado que tinha gente que ia afundá só com o peso das
corrente. Por duas semana gritava pra quem ia mariscá:
– Ei! Me dá uma passage!!!
Morreu, certamente. Mas até hoje veve de gritar pidino passage.
Sinhá pariu de gêmio. O menino nasceu morto e a menina ela nem chegô a
vê, pois a patroa mandô a coziêra levá pra onde num subesse nem nutícia, pra
mode não ser morta pelo próprio avô. Sinhá Lucinha saiu daquela cama direto pro
cimitério e ninguém mais pescô naquele lago.
João da Cruz estava estarrecido. Nunca imaginou que sua história fosse
tão macabra, nem que seu avô fosse uma assombração. Não pregou o olho à noite
toda. Pela manhã tomou uma decisão. Caminhou em direção ao lago e chegando à
beira, pode constatar com grande horror que a velha senhora dizia a verdade.
Seus pelos subiram, mas era seu avô. Precisava quebrar aquelas correntes
e libertar a alma daquele penar. Avistou uma canoa velha, quase uma casca de
pau. Embarcou e remou com as duas mãos durante algum tempo, até alcançar a
outra margem. Por longo tempo empenhou-se em procurar pelo avô acorrentado e
nem percebeu que um vendaval, acompanhado de forte chuva, chegara de surpresa,
agitando as árvores e as águas do lago.
O sol já estava se pondo, quando exausto e fracassado em sua busca, João
resolveu voltar. Porém, para sua surpresa não havia mais canoa e nem quem
pudesse ouvi-lo gritar:
– Ei! Me dá uma passagem!!!
Cecília Ugalde é Mestra em Educação Profissional e Tecnológica, Especialista em Gestão de Políticas Públicas, Graduada em Letras Português e literaturas da língua portuguesa; poetisa, contista e cronista; membro
efetivo da Academia Acreana de Letras, membro da Academia dos Poetas Acreanos, membro da Federação das Academias de Letras e
Artes do Estado do Acre, membro da Associação de Jornalistas e Escritoras do
Brasil-AJEB, membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia, membro da Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e Dra. Honóris Causa em Literatura pela Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos.
A PRIMEIRA BONECA DE CABELO - GINA
Por: Maze Oliver
No
ano 1964, o Brasil vivia a Ditadura Militar, a crise política afetava
todas as áreas. No Acre, em plena mata amazônica, lugar longínquo, era pior
ainda. Em Rio Branco, na pequena "aldeia", a capital, o comércio não
era lá essas coisas. O centro da cidadezinha à beira do rio Acre, com suas
lojinhas, poucas novidades apresentavam. Se hoje, já não possui muitas coisas,
imaginem nessa época.
Morgana, na sua
inocente infância, sonhava com uma boneca de cabelo; sim, porque as que já
havia possuído os cabelos eram de plásticos. Os cabelos não, a imitação dos
cabelos! Uma boneca assim moderna, era um sonho. Mesmo para outras crianças
ricas, era uma novidade. Além de ser muito cara, fora do alcance da
situação financeira da sua família, sem contar a dificuldade
para encontrar bonecas assim no comércio local.
Num passeio com
sua mãe e avó paterna, Dona Noêmia, fizeram uma visita que lhe rendeu a
realização do seu sonho. Na casa de um rico doutor da cidade,
após ouvir quieta no seu canto, os adultos conversarem sobre política e
se dividirem entre a favor e contra ao golpe no Brasil que também atingiu a
política no Acre; não lembra qual a relação dos seus parentes com a
família, mas que a conversa fora muito chata, isso ela lembra!
Ao sair da casa
viu uma boneca linda com cabelos loiros e olhos azuis, ao lado do
vaso para lixo! E uma ideia lhe veio à cabeça imediatamente. Pedir o
brinquedo à sua avó. Por que não?! Iria para o lixo! Mas a avó nos seus
mais honestos brios, pediu a dona da casa, a boneca. Saiu do
local muito feliz levando nos braços o seu sonho. Ela não era bem o
brinquedo perfeito para as crianças daquela casa, pois não tinha mais nem
braços e nem pernas. Mas, para Morgana, que sonhava com uma boneca daquelas ela
estava perfeita demais.
Em casa,
foi uma verdadeira festa. A avó que sempre a cobriu com mimos, o que
jamais esquecerá - pois foi para Morgana, toda a
referência de carinho e amor que recebeu na infância;
depois de lavar e tratar os cabelos da boneca, lhe fez uns braços e
umas pernas com panos e um dia, aproveitando-se da saída da mãe,
fez vários vestidos lindos para ela. Batizaram juntas a princesa loira e
brincaram de casinha muitas e muitas vezes. Quem não ficou muito
feliz foi Dona Fátima, quando descobriu que a avó Noêmia havia cortado seu
vestido de casamento, para costurar as roupinhas da boneca.
Ela jamais esqueceu a
sua linda boneca de cabelos, de nome Gina, suas pernas e
braços de panos, nem de longe puderam impedi-la
de sonhar e ser feliz, mesmo num tempo de pobreza e total
insegurança social e política que viviam na época e que silenciosamente
acompanhou, ao ouvir as conversas de seu José reclamando da renúncia do
governador da época, pressionado por pactos e conflitos políticos, não muito
diferentes dos quais vivemos hoje.
Conto do livro Memórias de Morgana,
de Maze Oliver. Encontre outros episódios no link
Maze Oliver é cronista, contista e poetisa, acreana, formada em Orientação
Educacional pela Faculdade de Pedagogia da Universidade Federal do Acre, com
pós-graduação em Ensino Infantil e Fundamental. Imortal da Academia Acreana de
Letras (AAL), membro fundadora da Sociedade Literária Acreana (SLA). Possui
sete livros publicados, cinco deles no link: http://clubedeautores.com.br

JOVENS
IMACULADAS
Por: Luísa
Karlberg
E
a missa matinal chegava ao seu término. O Bispo Joseph, na sua casula branca e
estola vinho, trazia, à mente de nós, meninas, a representação do corpo e do
sangue de Jesus. Na capela reinava a atmosfera de intensa paz, havíamos
recebido o pão de trigo puro, em nome de Jesus. Nessa compenetração, ouve-se a
doce voz do bispo a dizer: Ite, missa est, ou seja, ide, a missa é finda. E,
assim, nos perfilamos, em fila, para sair da capela e caminhar, em seguida,
para o refeitório do colégio, para o café da manhã.
Do
lado de fora, à porta de saída da capela, com as mãos postas, expressão
indecifrável, estava a Madre Superiora Adne (a águia), com ar
compenetrado, como se estivesse a rezar ou a meditar. À medida que a fila de
meninas passava diante dela, vez por outra, abria os olhos e fitava algumas,
com semblante de neutralidade. Nós sabíamos o significado daquele gesto. Havia
uma mensagem no ar, o que deixava a turma inteira, 72 alunas do internato, em
sinal de alerta. Afinal, o que havia acontecido? Ninguém sabia. Ou melhor,
algumas sabiam, mas o silêncio era sepulcral, só se ouvia o barulho do vento
sobre as palmeiras, logo adiante, no pátio.
Eu,
na santa inocência, sabia de um segredo, mas imaginei que iria guardá-lo
comigo, sob a confiança de minhas colegas mais velhas, que muitas vezes me
tomavam por escudo. Mas cuidavam de mim, juntamente a Madre Adne, quando ali
cheguei aos seis anos de idade. A madre tomou-me por filha de coração. Eu
sentia esse amor dela por mim. Eu fui percebida, desde o início, como uma
criança com sentimentos e sofrimentos de saudades dos pais. Segui andando, mas
sabia que o olhar da religiosa logo iria pairar sobre minha pessoa, eu guardava
um segredo que ela havia descoberto. E, então, o que aconteceria? Ela
levantaria a cabeça e me perscrutaria com os olhos, num convite para uma
confissão? Como as filas andam, logo me vi debaixo do olhar da minha superiora.
Olhei-a de frente, e vi preocupação naqueles olhos verdes transparentes,
brilhantes. Ela, de mãos postas, olhou-me com firmeza e inclinou a cabeça. Eu
tremi, conhecia aquele gesto. Era um convite para dirigir-me à sala secreta.
Engoli a saliva, ainda com o gosto da hóstia sagrada, e caminhei para o espaço
reservado por ela.
Ali
o ambiente era sacrossanto, tudo muito limpo, arejado, imagens de santos por
toda parede central. Na outra, à esquerda, havia imagens de religiosos que
haviam partido para o Céu. Todo o espaço era como uma extensão da capela, ali
se respirava os mandamentos sagrados.
Entrei
na sala e fiquei de pé, parada, braços cruzados, cabeça baixa, em sinal de
respeito e reverência. Ali reinava a exigência de postura do corpo, dos braços
cruzados, da posição das pernas, não somente nas formaturas, na capela, nas
filas, mas, também, quando se esperava alguma ordem, conselho, confissão. Elevei
o pensamento a Deus e pedi coragem para olhar, novamente, a religiosa, sem que
o pranto rolasse sobre o meu rosto. Ouvi passos no interior da sala próxima.
Senti que o momento fulcral se aproximava. Respirei fundo, comecei a rezar a
Ave-Maria. Não deu tempo de concluir a oração. A porta se abriu e a madre
estava ali diante de mim.
Ouvi
sua voz firme a chamar meu nome. Permaneci de cabeça baixa, aproximei-me dela e
beijei suas mãos. Ela segurou firme as minhas e acomodou-me numa poltrona de
couro. Sentou-se, ergueu meu rosto com suas duas mãos e falou:
-
Olhe para mim, criança não mente, é pecado.
Olhei-a
já com os olhos marejados, mas com profundo respeito e devoção. Ela era, ali, a
minha mãe, eu a amava. Também sabia que ela me guardava no coração, mas que
esperava de mim uma verdade. E enquanto eu pensava nesse amor que nos unia, ela
se aproxima mais, continua a erguer meu queixo com suas finas e delicadas mãos.
Então soltou a pergunta que eu mais temia:
-
Filha, você esteve com as moças no Alto da Glória?
-
Sim, Madre, eu estive com elas.
Depois
dessa afirmação, veio a outra pergunta, também difícil, talvez a mais
importante para ela:
-
Os rapazes seguraram as mãos das duas moças?
Respondi
que não. E ela insistiu:
-
Não se tocaram nas mãos?
-
Não, senhora Madre, não se tocaram.
E
ela continuou:
-
Em algum momento se abraçaram?
-
Não, Madre, elas apenas falaram que era proibido conversar, se olharam e
regressamos ao convento. Foi somente isso, nada mais.
Senti
que ela soltou o ar dos pulmões, numa sensação de alívio. Seu rosto, sempre
sereno, pareceu-me mais angelical. Puxou-me para perto de si, abraçou-me e
disse:
-
Reze três Pai-Nossos e três Ave-Marias. Sair do convento, mesmo para acompanhar
alguma moça, é proibido. Deus te abençoe, filha.
E,
eu, na minha alma de menina, rezava, já no coração, mais de vinte Pai-Nossos e
as cinquenta Ave-Marias do terço, porque meu coração puro sabia não haver
pecado em uma moça segurar as mãos de um rapaz, por alguns segundos, ainda mais
quando o amor começa a brotar no coração. Deus sabia que eu não o traia, apenas
protegia um pouquinho as minhas amiguinhas mais velhas.
Luísa Lessa é da Academia
Brasileira de Filologia, Presidente da Academia Acreana de Letras,
membro-fundadora da Academia dos Poetas Acreanos e Membro da International
Writers and Artists Association (IWA).
Amei. Que lindo conto!
ResponderExcluir👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirParabéns pela narrativa professora! Texto bem escrito, pensamento lógico bem harmonizado, texto bem detalhado e cativante. Além de nós permitir viajar no tempo.
ResponderExcluirObrigado por tornar público tal narrativa.
Esse conto tem continuidade?
Não, esse conto não tem continuidade. Tenho muitos outros no mesmo estilo. Fui criada e educada numa escola alemã católica. Minha formação advém desse colégio, onde cheguei aos 6 anos e sai aos 16. À medida do tempo, irei publicando outros contos. "Jovens imaculadas" traduz um tempo, valores e cultura. Embora simples, à primeira vista, há nele muitos valores. Obrigada pelas interligações.
ResponderExcluirQue texto abençoado. Tem muita candura e respeito,sem deixar de fora, o humor. Parabéns querida escritora.
ResponderExcluirFátima Cordeiro.
ResponderExcluirA temática do texto nos conduz a uma época em que havia respeito e obediência aos superiores. A cultura e os valores eram outros , e apesar de aqui e ali, alguém burlar alguma norma, certamente eram muito mais felizes. Tenho saudades da minha infância. Parabéns pelo belíssimo e doce conto, professora Luísa!
ResponderExcluirLindo conto tia. Muito sentimento é poesia.
ResponderExcluirUm conto bem estruturado, numa linguagem erudita, historia que prende o leitor do início ao final, quando deixa o leitor com o gosto de quero mais. Tem outros textos assim? Gostaria muito de lê-los. Parabéns!
ResponderExcluirMaze Oliver nos traz uma material novo, lúdico, para as crianças, de forma bem didática e interessante. É também uma excelente fonte de estudo para os estudantes. Parabéns, estimada confreira!
ResponderExcluirA literatura é um instrumento muito importante para auxiliar no processo de aprendizagem e desenvolvimento de estudantes e um bálsamo à alma dos educadores, cientistas, estudiosos, olhando para o texto literário sob a ótica de um conceito de arte que engloba várias modalidades expressivas, como mecanismos de desenvolvimento, apropriação da linguagem e
ResponderExcluirda cultura, da aprendizagem e da criação.
Belíssimos contos. Parabéns, senhoras Maze e Luísa. A inocência das meninas, as feminilidades, o palco das narrativas... 👏🏼👏🏼
ResponderExcluirA literatura é fruição, é mergulhar no prazer que a leitura pode oferecer. O prazer estético que a literatura proporciona torna-nos mais atentos àquilo que é impalpável, torna-nos sensíveis às dores do mundo.
ResponderExcluirMuita ironia o Sr. João da Cruz se deparar nesse seringal de lago mal assombrado. Foi um época muito difícil para esse povo do trabalho em seringal. Sobreviventes da floresta. Um conto similar à vida do Acre no século xixi e xx. Parabéns, confreira Cecília Ugalde. A linguagem bem adequada e uma história que bem parece real.
ResponderExcluirVerdade, Presidente Luísa. O conto é verossímil e retrata a vida daqueles que de um momento para outro, não tiveram onde morar.
ExcluirSec. XIX e SÉC. XX.
ResponderExcluirCecília, muito interessante seu conto. O que mais gostei foi relembrar o vocabulário acreano da época. Tem outros? Parabéns! Maze Oliver.
ResponderExcluirO vocabulário rememora o dialeto de muitos ribeirinhos analfabetos da própria língua. Pessoas que não tiveram oportunidade de ir à escola. Tenho outros contos sim, Maze. São no mínimo uns 35 contos escritos, sendo que 22 estão publicados na obra "A outra face da colheita", lançada em outubro de 2019.
ExcluirFátima Cordeiro, surpreendente seu texto. Gostei demais! As surpresas da vida e a esperança de muitos.
ResponderExcluirCecília, sua obra A outra face da colheita, eu tenho é recomendo. Gostei muito dos contos.
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